sábado, outubro 16, 2004

O muro
Ali, onde os porcos são alimentados, untávamos com banha memórias e vasilhames para o café da manhã. O tempo parecia enxertado de algas marinhas, névoas transcendentes, vida obscura de um tempo irreconhecível povoando cada milimétrico gesto. Insólita aurora, diriam. Alguns imaginariam ser ressaca. Mas eram flashes em desatino àquela hora da manhã. Não estaria a culpa rendida? Havia virtudes por perceber? Não bastava o muro que nos circundava naquelas paragens? Dormente prostração, misericórdia clamada. Então, as cinco e vinte, chegava o mendigo que punha o alforje junto ao portão. Ele gritava dores interplanetárias, ao nosso sentir, pois aquelas palavras, embora revelassem sincero infortúnio, não pareciam inteligíveis a qualquer terráqueo. E naquela intensidade monstruosa, ainda assim, sentiríamos um leve estupor.
Enfim, o tédio alvoroçava as glândulas de todos, até que a noite os separava outra vez. E silente sofrimento nos vincularia ao amanhecer, se não fosse o muro.


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