Afazeres domésticos
Comecei pelo banheiro. Mas naquele dia não sei o que havia com a gente. Espalharam calcinhas imundas, chinelos com a sola lambuzada de não sei o quê, pingos suspeitos sobre todo o taco - sim este banheiro é de taco, não existe maior desprezo de raciocínio - e ainda por cima três
modess usados e escarrados pela pia, além de restos de pasta de dentes. Troços nadavam dentro do vaso sanitário, e me saudavam em grego. Não suportei. Veio como numa avalanche ensurdecedora de desespero. Não resisti. Catei todas as manchas repugnantes com uma espátula, os absorventes sujos, a toalha encharcada do último banho, as calcinhas horrorosas de mal gosto, para mulheres sem pregas, a ceroula do velhote na qual babou líquido seminal, sim,
tudo para o liquidificador. Misturei o pacote de
biscoito Maria com o qual a patroa me bonificava. Com água da privada para diluir a poção.
E pronto, a vermelhidão deu um aspecto de patê de fígado. E isso foi para o café da manhã, com
croissants e pão de mel. Todos experimentaram. Que delícia. Mas não pára por aí. Entrei no quarto do velhote. Samambaias! Argh! Arranquei-as num suspiro. Tudo no chão, aquele xaxim estraçalhado me acordou. Meus sentidos voltaram a brilhar novamente e eu bradava por deuses hindus. Xaxins me impedem de continuar. Preciso destruí-los todos.
A devastação me fazia rir como uma hiena . Aquele porta-retrato com uma foto em Melbourne. Destruí, não preciso daquele sorriso ridículo estampado para continuar. Quebrei o cofrinho, que era um porco capado. Salafrários, havia moedas de réis. Para que isso? Deve ser herança sentimental do velhote coronel o patriarca, aquele bunda suja infame. Cuspi no velho retrato suntuoso antes de atirá-lo pela janela.
Il faut oublier. Bibelôs estraçalhei, só guardei os elefantes. Não vou mentir que me apropriei de algumas jóias, não as ridículas de trinta quilates, mas as de dezoito, que são discretas. As roupinhas e modelitos, todos descarga abaixo, entupiu tudo. E olha só, a água da privada agora jorra pelo quarto do velhote. A madame vai adorar que a
jacuzzi que a suíte virou. Luminárias bregas e fora de moda? Destruo-as. Para que? Coloquei um
Ne me quittes pas na vitrola velha (outra herança sentimental do coronel babão). Construirei outro mundo,
où la loi c'est moi. Picotei aquelas revistas de arquitetura, colei uma por uma na parede com saliva e detergente. A cama: esta sim fica intacta com o sua roupa suíça. Fica para depois.
Então o quarto de Mimi, as coisinhas adolescentes, para que mantê-las. As bonequinhas, decapitei-as.
Catchup nelas, um arzinho de morbidez tola e mostarda para o pus.
Algumas eu as suicidei com xuxas de cabelo. Outras morriam de apendicite só de olhar as amigas agonizantes. Mimi dormia tranqüilamente. Ela acordou com o barulho das britadeira sobre o seu carpete, mas apenas balbuciou inconscientemente: mimi. A pobre esquizofrênica não tem culpa, eu sempre gostei dela. Coloquei algodão no seu nariz. Pus fogo nas violetas da janela. Gasolina nas roupinhas de verão, e nos casacos da Disneylândia. Com os cintos degolava as bonecas e os abajures são seus chapéus. Três bonecas permaneceram sorridentes. E a pilha resistia, pronunciavam:
- Você quer brincar comigo? Sete centavos na carteira. Foi para o lixo também, Mimi não precisa de identidade. Marisa Carmélia Dias Da Silveira Etchepare Luíza Weber de Assunção Borba? Outra não há que não Mimi. E agora ela dorme com as bonecas dependuradas. Do lado, dorme a peste impúbere. O quarto do Júnior tem três computadores. Um eu liguei e coloquei um papel de parede:
dois peitos enrugados de velha necrófila . Nos outros, cacete. Adorei as molas saltando de dentro da tela. E com os vidros derrubei o espelho. Com os halteres arrebentei as miniaturas de Ferraris. Achei uma boneca inflável no guarda roupa, e nela havia o meu nome, desgraçado. Fiz com que engolisse toda a boneca, enfiei esôfago a dentro. Com o tapete armei uma tenda e com maçarico desenhei macacos na parede, vomitando, vomitando naquele quarto adolescente de classe média americanizado. Os sapatos ridículos caíram vinte e três andares abaixo. Troquei as cordas da guitarra por cadarços, e enviei um sorriso pela Internet. Antes que eu ateasse fogo no último computador.
Na sala, pichei o alabastro com os dizeres 'matem o geraldão' 'cabeça do geraldão a dois contos', geraldão é o porteiro nojento que não me deixa subir pelo elevador social, aquele corno insuficiente, acabei com a mesa de mármore, deixei os
souvenirs de Johanesburgo e Helsinki em pedacinhos, despejei água da privada no jardim artificial. Não vou mentir que guardei pra mim aquele jogo de talheres em prata cravado de esmeraldas. Depois fui na cozinha, e a Ciça, a cozinheira gorda imunda, que eu amo no meu coração e juntas sempre reunimos engenhos maquiavélicos, embora fosse cotó e fanha a Ciça estava estarrecida com o sangue que escorria e invadia toda a cozinha que ela tinha acabado de limpar. Meu deus, Ciça, disse eu, faz alguma coisa com esse sangue, que tal algo ao molho pardo. Mas não havia jeito, ela já estava catatônica, então
passei um pouco do batom russo da patroa na Ciça véia, e disse que depois fritava uns sapinhos p'ra ela . Pobre Ciça, não é acostumada com a sangria. Então a patroa chegou dizendo que estava com uma cefaléia aflitiva, que trouxéssemos os milhares de chás do Himalaia importados especificamente para o seu bem-estar, mas quando viu as bonecas enforcadas, desatou a rir e o velhote veio atrás me excomungando, lasquei uma colher de sopa quente nos olhos do ilustríssimo e ele tropeçou, indo de quina com a caixa de aço com as minhas porcelanas novas, até moribundo ele a flatular e emporcalhar a ceroula, e eu insistia, prejudica atmosfera! Com esse não tive muito trabalho. Só restava a dondoca. A cefaléia a deixou atarantada e ao rir o hálito dela me enfraquecia, perdi o controle, mesmo assim alcancei o aspirador de pó. Consegui desgrenhar seus cabelos o que a deixou puta, pois tinha pago caríssimo pela escova, hidratação e esfoliação do couro cabeludo no
coiffeur, essa fresca não conhece creme alisante, que dura e faz bem para as glândulas. A partir disso, lembrei-me dos cosmético e fi-la engolir todas aquelas gosmas, ungüentos, barras, pomadas para as pernas e seus calombos. Ela vomitou o pâncreas, que consegui reconhecer em meio a tanta placa gordurosa, e notei que lhe acometia uma pancreatite aguda. A coitadinha iria esticar de qualquer jeito, mais cedo ou mais tarde.
E quando a canção estava no
ancien volcan, explodi em sensações disparatadas, fui à busca incessante de Ciça, porque o palácio era nosso e o sangue nos cortejava. A dona teimou acordar mas dei uns tabefes e os dedos do Júnior para que se alimentasse e não me perturbasse mais. Não teve jeito,
então soquei-lhe dois espetos de churrasco no umbigo, o que não só lhe acalmou, como lhe fez recordar memórias da infância em longínquas eras açucaradas. Ciça despertou do seu torpor, e veio em minha direção, dizendo que Maysa Matarazzo já terminava a canção. Dançamos, num belíssimo trotoar de duquesas siamesas, imitávamos Uma Thurman vertiginosa, e no trecho final bebíamos um autêntico
scotch, e para arrematar, não me veio outra coisa à mente senão homenagear Rubem Fonseca: caguei sobre aqueles lençóis limpíssimos, que fiz questão de manter intactos para o desfecho triunfal.